

O amarelo era a única cor que eu conseguia enxergar.
O arroz estava pronto para ser colhido.
Era dezembro. O calor fazia subir uma névoa tão quente que dava a falsa impressão de que as lavouras estavam pegando fogo.
E os olhos do menino só conseguiam ver os bandos de marrecas e marrecões que cruzavam o céu.
Em pouco tempo, muitas estariam mortas. Já me arrependera de ter convencido meu pai a deixar que acompanhasse a caça. A curiosidade infantil e o senso inato do macho predador que me fizeram chegar até ali, morriam cada vez que as espingardas calibre 12 ou 20, disparavam a carga de chumbinhos devastadora.
Não bastasse a artilharia pesada que todos carregavam, ainda atraiam as aves com apitos que imitavam o canto das marrecas piadoras.
Meu pai tinha uma regra básica: só se mata o que se vai comer. E até que tentava seguir o seu princípio ecológico, ainda que naquele tempo ecologia significasse a mesma coisa que o cumprimento da regra. O problema, para o dono da lavoura, é que as aves aquáticas migratórias todo ano faziam uma escala na região para se alimentar e seguir viagem para a Argentina. E se aproveitavam das lagoas e dos arrozais para obedecer o instinto animal. À devastação que elas faziam, os caçadores retribuíam com pólvora e chumbo. Felizmente, a caça foi regulamentada pelo Ibama em áreas específicas e em número reduzido a cada temporada.
A carne, escura, era gostosa. Ainda que as vezes acabássemos mordendo chumbinhos, cada fim de caçada, era uma festa.
De tanto insistir, tinha dado um tiro para o céu. Não acertei coisa alguma. Mas quase fui nocauteado pelo coice da arma.
Fui o primeiro a atirar. E em seguida, o ar ficou coberto pelo cheiro de pólvora queimada.
E, agora, vendo a desproporção daquela guerra em que uma parte quer apenas voar e se alimentar e a outra que queria impedir que a natureza seguisse seu curso, fiquei me sentindo ainda menor.
- Eu disse que caça é coisa para homem. Criança tem que brincar, jogar bola. A insistência foi tua. Cala boca e aprende. Meu pai era sutil como um trator.
- Aprender o quê? Como se mata?
Eu não conseguia conter o choro. Eram tantas marrecas e marrecões dependurados nas árvores próximas, que o cheiro do sangue embrulhava o estômago.
- Não, cortou meu pai. Aprende que um homem armado pode atirar em qualquer coisa. A maioria tem cérebro (colhão?) para matar só os bichos. Outros nem tanto. O diabo é que a gente nunca consegue imaginar o alguém armado pode fazer.
Aquele foi meu primeiro e único tiro.
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