16.9.05

Arthur Dapieve - O Globo

Desde que li uma muito bem guardada crônica de Arthur Dapieve sobre Elvis Costello, comecei a descobrir músicos de quem nunca tinha ouvido falar e músicas que nunca havia escutado. Foi através dele que escutei, por exemplo, Jorge Drexler muito antes dele ganhar o Oscar. Na coluna de hoje de O Globo, seus leitores passamos a conhecer Ted Hawkins. Estou reproduzindo a capa do CD citado "The Next Hundred Years" e a coluna toda do Dapieve. Leiam e escutem. E eu espero continuar descobrindo novos cantores e novas (ou velhas)músicas. Obrigado Dapieve./ Posted by Picasa
"Ted Hawkins (Arthur Dapieve) Há um bocado de justiça poética no fato de eu ter encontrado Ted Hawkins na rua. Ele passou a vida cantando e tocando por trocados no calçadão de Venice Beach, na Califórnia. Quando o conheci, porém, Hawkins já estava morto havia dez anos. Ali, na Pedro Lessa, passeio de pedestres ao lado da Biblioteca Nacional, ele era apenas o rosto forte de um negro de barba branca e chapéu na capa do disco “The next hundred years”. Notando meu interesse, o Beto, vendedor de CDs e LPs usados que, junto com o Carlinhos, o Jorge e o Ivaldo, entre outros, transforma aquele pedaço de Cinelândia num oásis para colecionadores, foi logo num dos meus pontos fracos: “Às vezes lembra o Neil Young acústico... Mas é meio folk, meio soul. Esteve no programa do Jô durante a Copa dos EUA. A versão do Creedence Clearwater Revival no disco é espetacular.” Bingo. A versão de “Long as I can see the light”, de fato, era espetacular: uma oração quase à capela. Todo o CD de 1994, aliás, era perturbador. Pela música e pela história por trás dela. Lendo daqui, lendo dali, descobri ser aquele o único disco de Hawkins por uma grande gravadora, a DGC, a mesma do Nirvana, em toda a sua vida de 58 anos. Descobri também que aquele disco estava longe de ser típico de seu trabalho. Porque “The next hundred years” cercou Hawkins por uma banda que, se não fez feio, vendeu uma sonoridade bem diferente daquela que o sujeito de 1,92 metro entregava sozinho ao violão, sentado num engradado de leite. Era assim que, em Venice, ele enchia sua tigela de dinheiro apesar de enfrentar a concorrência de duas dezenas de outros músicos de rua. O título “Os próximos cem anos” ganha um travo amargo se pensarmos que o artista na capa morreu, vítima de derrame, logo no primeiro dia do ano seguinte, 1995. Seja como for, o CD traz duas versões representativas de suas vida e obra: o country “There stands the glass” (de Russ Hull, Mary Shurtz e Michael Pierce) e o folk-rock “Biloxi” (de Jesse Winchester). A primeira diz: “Aí está o copo/ Que com certeza vai me aliviar a mente/ E lhe deixar para trás/ É o meu primeiro hoje”. A segunda descreve a cidade natal de Hawkins antes da passagem do furacão Katrina: “Garotos enchem seus baldinhos de areia/ E as tempestades vão soprar na direção de Nova Orleans.” Brrrrr. Além disso, uma de suas composições, “Ladder of success”, faz da troça da própria dificuldade de se dar bem um alerta aos candidatos à fama: “Não importa o que você conhece/ Importa quem você conhece/ Não importa o quão grande você é/ Você tem de conhecer alguém/ Que conhece alguém/ Que vai lhe dar uma mãozinha.” A despeito da letra, o ressentimento é um dos raros sentimentos que Hawkins foi incapaz de exprimir. Ele foi capaz de transbordar emoções do seu repertório porque sua vida esteve cheia delas. Não conheceu o pai. A mãe era alcoólatra. Reformatório aos 12 anos. Penitenciária estadual do Mississippi, Parchman Farm, aos 15. Três anos depois, livre, começou a vagar pelo norte dos EUA até decidir se livrar do frio na Califórnia. Após se frustrar com a gravação de um compacto, em 1966, concluiu que a única maneira de ganhar dinheiro com a música era tocar na rua. Daí os muitos covers, de seu ídolo Sam Cooke a Bob Dylan. Contudo, o seu talento era tal que volta e meia alguém cismava de registrá-lo, como na tocante dobradinha “Songs from Venice Beach” e “Love you most of all — More songs from Venice Beach”, lançada em CD apenas em 1995 e 1998, respectivamente. Outro disco foi em parte gravado por Andy Kershaw, da rádio BBC, em circunstâncias similares às das sessões do bluesman Robert Johnson: no quarto de hotel dos Eurythmics, em Los Angeles. Graças a Kershaw e, antes dele, a John Peel, descanse em som, Hawkins tornou-se uma celebridade na Inglaterra. Entretanto, a cada volta aos EUA, botava a tigela no calçadão. No álbum “The Kershaw sessions” (também de 1995), descobri mais um dos grandes momentos de Hawkins: a balada country “Happy hour”, de Steve Gillette e David MacKechnie. É uma das três mais dolorosas canção-de-corno americano que conheço. As outras, caso interesse, são “Don’t explain”, de Billie Holiday e Arthur Herzog Jr., e “Where did you sleep last night”, de Leadbelly, regravada pelo Nirvana no seu “MTV Acústico”. Em “Happy hour”, o marido decide dar uma paradinha para “dois drinques pelo preço de um” antes de ir para casa. No lusco-fusco do bar, porém, ele enxerga a mulher dançando colada a outro homem. Faz, então, seu solilóquio: “Todas as músicas e risadas e as palavras bonitas dele/ Levam embora o que quer que te fez triste/ Mas quando a graça acabar, o que você vai fazer/ Quando não restar nada de nós a não ser você?” Brrrrr . A voz de Hawkins é suavemente arenosa. Ele brincava que não conseguia tirar a areia de Venice da garganta. Teve, no entanto, de tirar dois nódulos dela. Dependendo de por qual rua se aproxima o ouvinte, sua música vai evocar alguém. Quem vem pela avenida do soul vai pensar em Cooke e Otis Redding. Quem vem pela rua do blues, nos blind Willie Johnson, Lemon Jefferson, Willie McTell, pedintes. Pela rua do country, em Hank Williams e no Presley mais caipira. Pelo beco do rock, em Rod Stewart e no Springsteen de “Nebraska”. Hawkins canta para todo o sempre numa encruzilhada metafórica."

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