1.5.06

Crônica de Ivete Brandalise

Pôr do sol no Rio Guaíba, Porto Alegre (Foto by Nádia Raupp Meucci) Pois procurei. Procurei e, finalmente, encontrei uma das crônicas de Ivete Brandalise. Está na página do Guia de Produção Teatral da PUC de Porto Alegre. Vale a pena ler. Dia de Agradecer Ivete Brandalise Obrigada por esse céu que se fez azul depois de tanta tempestade. Obrigada pela tempestade que me fez sonhar e desejar e descobrir o azul do céu. Obrigada pelo horizonte que meus olhos não alcançam, embora o concreto tente limitar meu mundo. Obrigada pelas frestas que ainda existem e que me deixam encontrar o céu, saber das nuvens, navegar pela mansidão do Guaíba, percorrendo ilhas e pontes, me perdendo e me achando em espaços indefinidos. Obrigada pela primavera que aconteceu em mim, pelas flores que brotaram na noite e se ofereceram regadas de orvalho na manhã. Obrigada pela manhã que veio luminosa. Obrigada pela noite que veio banhada de lua. Obrigada pelas estrelas que passearam por meus olhos. Obrigada pelos olhos que ainda se deixam salpicar de estrelas. Obrigada pelo riso, que ainda povoa minha vida. Obrigada pelos encantamentos que eu ainda encontro no riso fácil dos meus anjos loiros. Obrigada pelos anjos que fazem a minha poesia, as minhas canções, a minha alegria, o meu amor, até as minhas apreensões. Obrigada pelo amor que ainda existe em mim e me faz reviver na possibilidade de entrega. Obrigada pela ternura que a criança ainda sente num beijo meu. Obrigada pelas saudades que eu tenho, pelo bem-querer que não morreu. Obrigada pelo meu trabalho, pelo meu dia, pela minha noite, pelo meu ontem, pelo meu amanhã. Obrigada pelo alimento, pelo abrigo, pela vida, pelo amigo. Mas não agradeço o amigo que não tive, muito menos o amigo que partiu. Não agradeço a fome, o ódio, a guerra. Não agradeço a solidão. Não posso agradecer o sofrimento, o desamparo, o desemprego. Não posso agradecer as injustiças. Não posso agradecer a angústia, as tensões, a poluição. Não posso agradecer as perdas, os desencontros, os desencantos. Perco o jeito de agradecer quando encontro criança perdida na noite e me calo e me omito e deixo que ela se encolha na porta de um edifício e cubra seu frio com os jornais, e cubra sua miséria com o meu descaso e cubra sua infância sofrida com sonhos de um tempo melhor. Perco o jeito de agradecer quando vejo a flor murchando nas mãos magras e sujas da criança esmoleira. Perco o jeito de agradecer quando vejo que as cores não pertencem a todas as crianças, as flores não brotam para toda a gente, o dia é luminoso para muito poucos. E perco o jeito de agradecer quando descubro que o "obrigada" deve vir no singular, que o amor, a ternura, o alimento, a alegria não existem para todo mundo. Perco o jeito de agradecer quando me sinto culpada de agradecer.

4 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado por compartilhar tão linda crônica,Giácomo.
Gostaria de linká-lo por la.
Posso??
Grande abraço!

Anônimo disse...

Grato pela autorização,Giácomo.
Já esta merecidamente linkado por la.
Grande abraço!

Anônimo disse...

Muito bonito.
Abs,
N. Cotrim

Unknown disse...

Trabalhei, muito, esse texto, com meus alunos em minhas aulas de português.